Por que maior oposição a papa Francisco dentro da Igreja Católica vinha dos EUA

  • 23/04/2025
Nos EUA, as coisas não são fáceis: há uma atitude reacionária muito forte e organizada, chegou a dizer Francisco, tomando medidas duras contra seus críticos mais ferozes. Rezo para que não haja cismas, mas não tenho medo. Era setembro de 2019, e o papa Francisco estava respondendo a uma pergunta de repórteres sobre as crescentes tensões com a Igreja Católica Americana. Os problemas começaram no dia em que Jorge Bergoglio foi eleito Sumo Pontífice. O Vaticano vinha de dois papados conservadores — João Paulo 2º e Bento 16º — então a chegada do primeiro latino-americano e do primeiro jesuíta representou uma mudança radical de paradigma. Dentro da comunidade católica americana, havia um setor conservador que discordava dessa mudança. O ponto focal da oposição ao papa Francisco estava nos Estados Unidos, diz David Gibson, diretor do Centro de Religião e Cultura da Universidade Fordham, em Nova York, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Não foram apenas bispos e padres. Foram também leigos, organizações como o Instituto Napa ou a EWTN, uma espécie de rede de direita com muito dinheiro e grande mídia. Foram os leigos que financiaram e promoveram a oposição ao Papa, acrescenta. Francisco sabia disso. Nos EUA, as coisas não são fáceis: há uma atitude reacionária muito forte e organizada, disse ele. Essa atitude não mudou com a notícia de sua morte na segunda-feira (21/4). Por exemplo, o artigo principal do dia na revista religiosa americana First Things não foi um obituário, mas um artigo de opinião afirmando que de muitas maneiras, o pontificado de Francisco foi inadequado aos problemas reais que a Igreja enfrenta. O texto, que descreve a personalidade do pontífice como temperamental e autocrática, é de Charles Chaput, ex-arcebispo da Filadélfia e um dos maiores críticos do papa argentino dentro da Igreja americana. Francisco substituiu Chaput por um arcebispo mais liberal (e latino) assim que o conservador atingiu a idade de 75 anos. E ele não foi o único que lançou um confronto aberto com o papa e perdeu. Dentro da Cúria, outros três de seus principais oponentes eram um núncio apostólico, um bispo e um cardeal. Ao longo dos 12 anos de papado de Francisco, um acabaria sendo excomungado, outro seria deposto e o terceiro perderia todos os privilégios materiais concedidos a ele pelo Vaticano. Marxismo puro Tanto pessoal quanto ideologicamente, Francisco rejeitou luxos. Por exemplo, em vez de se mudar para o Palácio Apostólico do Vaticano (que inclui a Capela Sistina), ele escolheu a residência Santa Marta, onde morava em um pequeno apartamento. Sua primeira exortação apostólica, intitulada Evangelii gaudium (A Alegria dos Evangelhos), foi precisamente um chamado aos católicos para rejeitarem o consumismo e a grande acumulação de riqueza, e voltarem sua atenção para os pobres. As críticas mais fortes ao texto vieram do setor conservador da mídia nos EUA. O influente comentarista político conservador Rush Limbaugh disse então que Evangelii gaudium era marxismo puro saindo da boca do papa. O papa foi além do catolicismo aqui, e isso é pura política, disse ele. Nos EUA, 20% dos adultos se identificam como católicos e, dentro desse grupo, os brancos não latinos representam 54%, de acordo com pesquisas do Pew Research Center realizadas entre 2023 e 2024. Gibson explica: A liderança da Igreja nos EUA ainda é dominada por bispos e padres descendentes de imigrantes europeus brancos. E eles estão cada vez mais conservadores. Para eles, Francisco foi um verdadeiro choque. Essa liderança europeia branca alcançou o sonho americano. Eles eram de classe média, depois de classe média alta e, por fim, ricos, acrescenta, observando que é por isso que não compartilham o foco na pobreza. Questões sobre as opiniões do papa sobre o capitalismo se intensificaram nos EUA antes de sua visita ao país em 2015, uma viagem que também o levou a Cuba. Meses antes, o Sumo Pontífice havia declarado que o dinheiro é o esterco do diabo e havia pedido o combate a essa cultura do descartável, cultivada pelos poderes que controlam as políticas econômicas e financeiras do mundo globalizado. Na época, Stephen Moore, economista-chefe do think tank conservador Heritage Foundation, sediado em Washington, disse à BBC: Há muito ceticismo entre os católicos (americanos). Acho que este é um papa com claras inclinações marxistas. Não há dúvida de que ele demonstra um ceticismo muito claro em relação ao capitalismo e à livre iniciativa, e (...) isso me parece muito preocupante, acrescentou Moore, também católico. Embora o papa negue ser marxista, o jornalista católico Austen Ivereigh, que escreveu vários livros sobre Francisco, indicou que, quando jovem, Bergoglio foi profundamente influenciado pelas ideias peronistas — derivadas do ex-presidente argentino Juan Domingo Perón — que incluíam a justiça social. Ao chegar a Cuba, Francisco concedeu uma entrevista coletiva na qual declarou: Não disse nada que não esteja na doutrina social da Igreja (...). Talvez uma explicação tenha dado a impressão de ser um pouco mais 'esquerdista', mas seria um erro [interpretá-la dessa forma]. Os que constroem muros Nos Estados Unidos, o republicano Donald Trump chegou ao poder em 2016 com uma campanha focada na construção de um muro na fronteira com o México e, em 2025, foi reeleito prometendo a maior deportação em massa da história do país. Francisco, por outro lado, era um defensor dos imigrantes. Não foi em vão que a primeira viagem do seu pontificado foi a Lampedusa, a ilha mediterrânica que se tornou símbolo da imigração da África para a Europa. Em fevereiro deste ano, por exemplo, Francisco enviou uma carta aos bispos dos EUA afirmando que o ato de deportar pessoas que, em muitos casos, deixaram suas terras devido à extrema pobreza, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração do meio ambiente, fere a dignidade de muitos homens e mulheres, e de famílias inteiras, e os coloca em um estado de especial vulnerabilidade e indefesa. O diretor da Heritage Foundation, Kevin Roberts, chamou a mensagem de ataque velado aos católicos que apoiam Trump. Não foi a primeira vez. Durante a primeira campanha eleitoral de Trump, o papa disse, sem nomear o então candidato: Uma pessoa que só pensa em construir muros (...) e não em construir pontes não é cristã. Em resposta, Trump, que se identifica como presbiteriano, disse: É vergonhoso que um líder religioso questione a fé de uma pessoa. O cardeal americano aposentado Raymond Leo Burke, um ultraconservador que muitos analistas consideram o maior crítico de Francisco, também discordou. Burke apoiou Trump durante a campanha presidencial, dizendo que ele defenderia os valores da Igreja. Ele também atuou como presidente do conselho consultivo do Instituto Dignitatis Humanae, uma organização católica de direita, e tinha laços estreitos com o ex-conselheiro de Trump, Steve Bannon. Burke convidou Bannon para dar uma palestra no Vaticano, onde ele falou sobre sua visão do mundo atual como uma batalha entre a civilização ocidental e o islamismo radical. Durante o primeiro mandato de Trump, Burke também declarou que limitar a imigração muçulmana era uma decisão responsável e patriótica. Francisco, por outro lado, promoveu o diálogo inter-religioso, que incluiu vários encontros históricos com líderes islâmicos, e afirmou repetidamente que é incorreto vincular o islamismo à violência de um pequeno número de fundamentalistas. Para Gibson, os católicos e cristãos americanos colocaram a ideologia e a política partidária antes de sua fé. Você é acolhedor? Você é inclusivo? Você não julga? Foi isso que o papa Francisco fez. E a Igreja americana tende a ser excludente e preconceituosa, acredita o especialista. A agenda homossexual O papado de Francisco optou por uma mudança de abordagem em relação à homossexualidade. Por exemplo, ele disse que a Igreja Católica deveria pedir desculpas aos gays pela forma como os tratou: O catecismo diz que eles não devem ser discriminados. Eles devem ser respeitados e acompanhados pastoralmente. Mais uma vez, Burke se opôs publicamente ao papa. Junto com outro cardeal, ele assinou uma carta aberta pedindo o fim do que eles chamaram de a praga da agenda homossexual e a vinculou a casos de abuso sexual infantil por padres nos Estados Unidos. Eles também alegaram que a Igreja erroneamente culpou o abuso de poder clerical como a principal causa dos escândalos. Abusos dentro da Igreja e seus encobrimentos pairavam sobre todo o papado de Francisco: acusações de muitos setores e regiões de que ele não havia feito o suficiente. Uma das críticas mais duras sobre esse assunto veio do italiano Carlo Maria Viganò, cujo último cargo antes de se aposentar foi o de núncio apostólico (embaixador) em Washington. Viganò escreveu uma carta que foi manchete no mundo todo acusando Francisco de encobrir abusos sexuais dentro da Igreja americana — o que o Vaticano negou — e pedindo a renúncia do papa. Ele chegou ao ponto de ignorar sua autoridade. Tanto que no ano passado ele foi excomungado após ser considerado culpado de cisma, o que significa que ele se separou da Igreja Católica. Enquanto para o fiel católico a Igreja é Una, Santa, Católica e Apostólica, para Bergoglio a Igreja é conciliar, ecumênica, sinodal, inclusiva, pró-imigração, ecossustentável e favorável aos gays, escreveu ele após ser excomungado. Os verdadeiros cismáticos Embora Francisco tenha assumido posições mais progressistas, como ser o primeiro papa a permitir que católicos divorciados e recasados ​​recebessem a comunhão, ele também assumiu posições conservadoras. Um exemplo foi o aborto, uma questão na qual ele era intransigente. O que ele não acreditava era que o aborto deveria ser a principal preocupação da Igreja, algo que está no centro da agenda católica americana há anos. Nossa defesa do inocente ainda não nascido, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, escreveu Francisco. No entanto, as vidas dos pobres, dos já nascidos, dos indefesos, dos abandonados são igualmente sagradas, acrescentou. Em entrevista ao canal de televisão católico EWTN, Burke disse: [Francisco] acha que falamos demais sobre aborto, demais sobre a integridade do casamento entre um homem e uma mulher. Mas nunca é demais falar sobre isso. Nesse sentido, outra figura que se opôs publicamente ao papa foi o então bispo da diocese de Tyler, no Estado americano do Texas, Joseph Strickland. Strickland lançou uma série de ataques às tentativas de Francisco de atualizar a posição da Igreja sobre questões sociais e de inclusão, incluindo aborto, direitos dos transgêneros e casais do mesmo sexo. Em uma carta, ele sugeriu que tentativas de mudar o que não pode ser mudado levariam a uma divisão na Igreja. Eles são, disse ele, os verdadeiros cismáticos. Sem misericórdia com as elites Alguém precisa dizer isso publicamente: o Santo Padre não entende a Igreja Católica nos EUA e está prestando um péssimo serviço a ela, disse Jayd Henricks, ex-diretor executivo de relações governamentais da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, ao First Things. O mal-entendido foi mútuo. Francisco chegou a brincar que era uma honra ser criticado pelos católicos conservadores nos EUA. Em sua opinião, houve uma evolução correta na compreensão de questões de fé e moral, mas a Igreja Americana mostrou atraso com sua aplicação estrita de doutrinas e ideias tradicionais. Séculos atrás, ele exemplificou, alguns pontífices eram tolerantes com a escravidão. Ele acreditava que a Igreja havia mudado e continuaria mudando. Embora o papa tenha incentivado seus críticos a perceberem que era inútil olhar para trás, ele também tomou medidas concretas para garantir que esse fosse o caso. Por exemplo, em fevereiro de 2025, poucos dias antes da posse de Trump, ele nomeou Robert McElroy, um padre aberto à comunidade LGBT e imigrantes e próximo do ex-presidente Joe Biden, como Arcebispo de Washington. Outro caso de grande repercussão foi a demissão de Strickland em 2023, uma ação que foi seguida três semanas depois pela expulsão de Burke de sua luxuosa residência no Vaticano e pela revogação de seu alto salário. Strickland se recusou a renunciar após uma investigação do Vaticano que o considerou culpado de irregularidades financeiras em sua diocese. Strickland não só estava administrando mal sua diocese, mas também estava gastando uma quantidade excessiva de tempo online incitando os fiéis a desobedecerem ao papa, disse a teóloga e canonista americana Dawn Goldstein, especialista na Igreja Católica, à BBC News Mundo na época. Sobre Burke, Goldstein explicou: Ele foi punido após 10 anos assediando Francisco e tentando se posicionar como uma autoridade moral superior ao papa. Gibson, por sua vez, disse em uma entrevista à PBS que a marca registrada do papa era ajudar os pobres, os sem-teto, os imigrantes e os refugiados; é por isso que ele é considerado uma figura muito misericordiosa. Ele acrescentou que não era tão misericordioso com as elites da Igreja, aquelas pessoas poderosas que detêm todos os privilégios e vantagens. Quanto poder um papa realmente tem? Como crítica ferrenha do papa Francisco aos poderosos impactou muito além de seus fiéis Da cachaça à Amazônia: como o argentino Francisco se tornou o mais brasileiro dos papas

FONTE: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/04/23/por-que-maior-oposicao-a-papa-francisco-dentro-da-igreja-catolica-vinha-dos-eua.ghtml


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